Ellen narrando
O prédio do presídio se ergue na minha frente, frio e imponente. O sol forte da manhã bate na estrutura de concreto como se tentasse dar vida a um lugar que, na verdade, só respira pelo peso dos que estão lá dentro. Minha mão aperta a alça da bolsa, sentindo o suor na palma. Eu já estive aqui antes, já passei por outros presídios durante a faculdade, mas hoje é diferente. Hoje, esse é o meu trabalho.
Respiro fundo e caminho até a entrada. O segurança me encara de cima a baixo antes de falar.
— Documento e autorização.
Entrego tudo sem hesitar. Ele confere, acena para outro agente, e me manda seguir para o próximo procedimento.
— Primeira vez aqui, doutora? — o policial do lado de dentro pergunta, me olhando com desinteresse.
— Sim.
— Então já sabe como funciona. Tem que passar pela revista.
Eu já esperava por isso. Sei que a segurança aqui dentro precisa ser rigorosa, mas mesmo assim, a sensação de ser revistada é desconfortável. Retiro os objetos metálicos, o salto batendo seco no chão enquanto sigo as instruções. O scanner corporal faz um barulho agudo quando passo, e a agente me faz levantar os braços, deslizando as mãos sobre minha roupa, procurando qualquer coisa que não deveria estar ali.
Mantenho a postura firme, engolindo qualquer desconforto. Se eu quero estar aqui, tenho que aguentar isso. Assim que sou liberada, pego minha bolsa novamente e sigo pelo corredor, observando os portões de ferro sendo destrancados e trancados atrás de mim.
O barulho metálico ecoa, me lembrando do que esse lugar realmente é: um mundo à parte.
Logo sou levada até a sala dos atendimentos psicológicos. O agente que me acompanha me entrega uma ficha grossa, cheia de papéis presos por um clipe.
— Esse é o seu primeiro paciente do dia.
Agradeço com um aceno de cabeça e me sento atrás da mesa, puxando a ficha para mais perto. Ajusto os óculos sobre o nariz e começo a ler.
Nome: Gustavo Almeida.
Mas esse nome não significa nada para mim.
Olho mais abaixo.
Alcunha: Coringa.
Meu coração dá um pulo no peito.
Coringa. O dono do PPG. O dono do morro onde eu cresci.
p**a merda, qual a chance ?
Engulo em seco e continuo lendo. Os detalhes pulam diante dos meus olhos como uma história que eu conhecia de longe, mas que nunca tinha parado para entender de verdade.
Crime: Homicídios múltiplos. Formação de quadrilha. Tráfico de drogas. Organização criminosa. Execução de agentes da lei.
A lista continua, extensa. Mas o que realmente me prende é a descrição do crime que o trouxe para cá.
Vingança.
Os relatos são pesados. Frio, metódico, violento. Um estrategista nato. Não matou por impulso, não perdeu o controle. Ele planejou. Cuidou de cada detalhe. Esperou. Caçou.
Meu estômago revira.
Continuo lendo sobre sua trajetória dentro da prisão.
Comportamento: Dominante. Respeitado entre os presos. Comanda esquemas internos. Já esteve envolvido em múltiplas ocorrências, incluindo posse de celular ilegal, suborno de agentes, envolvimento com assistentes sociais e suspeita de manter influência direta no crime organizado fora da prisão.
Minha mente processa rápido.
Eu cresci ouvindo falar do Coringa. Meu bairro inteiro sabia quem ele era. A favela inteira sentia o peso do seu nome, mesmo que ele estivesse atrás das grades. Mas eu nunca o conheci. Nunca o vi de perto.
E agora, ele está prestes a entrar por aquela porta.
Respiro fundo, fecho a ficha e me recomponho. Ele não pode perceber que essa informação me balançou. Ele não pode ver que de todas as pessoas que poderiam estar sentadas nessa cadeira, esperando por ele, sou eu.
E por mais que eu tenha me preparado para esse trabalho, nada me preparou para isso.
Eu vou atender o Coringa.
A porta da sala se fecha, e por um instante, o silêncio pesa no ambiente. A única coisa que ecoa na minha cabeça é a própria decisão que tomei ao mandar o policial sair. Eu tô sozinha com o Coringa.
Ele se recosta na cadeira, abrindo um sorriso torto, relaxado demais para alguém que deveria estar se sentindo em desvantagem. Algemado, trancado numa sala comigo, ele nem parece um homem privado da própria liberdade. Pelo contrário. Ele age como se eu estivesse presa aqui com ele.
Cruzo as pernas devagar e estudo sua linguagem corporal.
O corpo dele tá solto, um dos pés esticado à frente, os ombros caídos para trás, como se estivesse numa conversa despretensiosa num bar. Mas os olhos… os olhos são outra história. Fixos, atentos, avaliando. Ele pode estar fingindo relaxamento, mas na verdade, tá me estudando tanto quanto eu estou estudando ele.
— Vai me encarar o dia todo ou a gente vai começar? — ele solta, puxando o canto da boca num sorriso debochado.
Ignoro a provocação e pego a ficha sobre a mesa, folheando lentamente enquanto falo:
— Você sabe que, depois de 15 anos, sua liberdade depende de mim, né?
Ele ri. Não um riso de humor, mas de ironia. Joga a cabeça um pouco pra trás e depois me encara novamente, os olhos escuros carregando uma certeza inabalável.
— Você acha que é a primeira?
Levanto a sobrancelha.
— Como assim?
— Você acha que você é a primeira psicóloga que senta aí na minha frente achando que tem poder sobre o que acontece comigo? — ele balança as algemas nos pulsos. — O sistema precisa mostrar que tá tentando ressocializar a gente, né? Senão pega m*l pra eles. Mas a real? Isso aqui é só teatro. Eu sou só mais um figurante no seu currículo.
Cruzo os braços e me inclino levemente para frente, desafiando o olhar dele.
— Você tá dizendo que não tem esperança? Que não acredita que pode sair daqui?
— Eu tô dizendo que ninguém vai me tirar daqui, entendeu? Isso aqui… isso tudo — ele abre os braços o máximo que as algemas permitem, apontando para a sala, para as paredes frias — é só protocolo. Eles tentam, fingem que acreditam nessa parada de ressocialização, fazem relatórios bonitos, mas você já passou tempo suficiente numa cadeia pra saber a verdade?
Fico em silêncio por um segundo, mantendo meu olhar fixo no dele. Ele tá tentando me testar, me provocar, me tirar da minha posição de profissional e me jogar no chão do sistema podre que ele conhece tão bem.
Apoio os cotovelos na mesa e entrelaço os dedos, mantendo a expressão firme.
— Você acredita que ressocialização não existe?
— Não.
— Então por que veio?
Ele dá um sorriso pequeno, aquele tipo de sorriso que não chega aos olhos.
— Curiosidade.
— Curiosidade sobre o quê?
— Sobre você.
Sinto meu coração dar um pequeno tropeço, mas não demonstro. Ele tá jogando, provocando, tentando entender quem eu sou e qual é minha fraqueza. Mas ele não sabe que eu já conheço o jogo.
— Eu sou só uma psicóloga, Gustavo. Você vai ter que procurar entretenimento em outro lugar.
Ele solta uma risada curta, balançando a cabeça devagar.
— Fala bonito, doutora. Mas eu sei que você tá tão curiosa sobre mim quanto eu tô sobre você.
Seguro seu olhar.
— Meu trabalho é entender a mente humana. O que me interessa é a forma como você pensa, não você.
Ele lambe os lábios, olhando pra mim de um jeito que me dá a sensação de que ele sabe que tô tentando manter o controle. Mas eu não vou perder essa disputa.
— Então me diz, doutora… — ele fala, se inclinando um pouco para frente — como eu penso?
Mantenho a expressão neutra.
— Você é inteligente. Metódico. Frio, mas emocional quando se trata da sua vingança. Você não sente culpa, mas sente orgulho do que fez. E, mais do que qualquer coisa, você gosta de controle.
Ele estreita os olhos levemente. Por um segundo, o sorriso no rosto dele vacila, mas depois ele volta.
— Você leu bem a minha ficha.
— Eu não preciso da sua ficha pra saber disso. Eu só precisei observar você nos últimos cinco minutos.
O silêncio se instala entre nós. Ele me encara, e eu não desvio. Sei que ele tá tentando encontrar um ponto fraco, alguma rachadura na minha postura, alguma hesitação. Mas eu não vou dar isso pra ele.
Então, ele faz algo inesperado.
Ele sorri.
— Gostei de você, doutora.
Cruzo os braços.
— Eu não tô aqui pra ser gostada.
Ele inclina a cabeça de lado, como se estivesse avaliando algo.
— Não tá?
Respiro fundo e solto a pergunta que eu tava guardando desde que comecei a ler aquela ficha.
— Me diz uma coisa, Gustavo… se você já decidiu que ninguém vai te tirar daqui, por que você ainda comanda o morro?
O sorriso dele desaparece na mesma hora. Agora, sou eu quem pegou ele de surpresa.
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