A luz do crepúsculo filtrada pela janela do dormitório pintava as paredes de um laranja enferrujado. Caliope entrou no quarto, o corpo pesado como se carregasse cada palavra não dita, cada segredo engasgado na garganta desde que chegara à Oxford. A mochila escorregou de seu ombro e aterrissou com um thud surdo na cadeira de madeira rachada. Ela olhou em volta: o quarto ainda estava imaculadamente vazio, sem rastros de uma colega de quarto — uma benção duvidosa. Solidão, pensou, é um luxo perigoso.
Abriu o laptop, disposta a decifrar as anotações sobre fonologia, mas os gritos guturais de uma guitarra distorcida irromperam pela parede ao lado, seguidos por gemidos. Não eram gemidos de prazer — eram roucos, entrecortados, como se alguém estivesse sendo arrastado por um pesadelo. Caliope cerrou os maxilares. Quarto 3D. Aquele cubículo maldito que parecia abrigar uma banda de metal caótica e, ao que tudo indicava, uma cena de tortura medieval.
— Merda — resmungou, esfregando as têmporas.
Os acordes se intensificaram, acompanhados por batidas de bateria que ecoavam em seu crânio como marteladas. Ela tentou focar nas anotações: consoantes glotais, fricativas labiodentais… mas as vozes distorcidas do vocalista sussurravam outras coisas em sua mente: CALÍOPE… JÁ FOI TARDE… ROPINKIS…
Dez minutos se passaram. Vinte. A música não cessava, e os gemidos agora pareciam vir de todos os cantos — da parede, do teto, até do vácuo sob a cama. Caliope fechou o laptop com um clique seco.
— Chega.
Despiu-se com movimentos bruscos, jogando a roupa suja no cesto. A água do banho quase escaldante não apagou o rufar da bateria, mas pelo menos ofuscou os gemidos. Enquanto esfregava o shampoo, imaginou cenários: talvez o vizinho fosse um serial killer treinando seu próximo ritual, ou um estudante de música experimental com tendências sádicas. Ou ambos.
Ao sair do banho, envolta em uma toalha, a música havia parado. O silêncio era tão abrupto que doía. Caliope vestiu um moletom velho e calças de yoga, os cabelos ainda pingando no caderno aberto.Ela anotou algo no notebook sobre o professor morto
— Quem matou você? — sussurrou para o a tela, como se a tela pudesse responder pudesse responder.
As horas escorreram. Ela mergulhou em artigos sobre assassinatos não resolvidos no campus, mapas da biblioteca marcando onde o corpo fora encontrado e a placa da biblioteca— Veritas vos liberabit. A verdade libertaria quem? Os mortos? Ou enterraria os vivos?
A madrugada chegou sorrateira. Seus olhos ardiavam, e as palavras do livro de fonologia dançavam na página. A última coisa que lembrou foi a cabeça tombando sobre o braço, o cheiro de papel envelhecido misturado ao do café frio.
O despertador a acordou com um gemido eletrônico. Caliope abriu os olhos, desorientada. Estava deitada na cama, coberta pelo edredom que jurara não ter usado. Sentou-se de repente, o coração batendo em código morse.
— Como…?
Na mesa, os livros ainda estavam abertos, o caderno com rabiscos caóticos. A caneta havia rolando para o chão, manchando o carpete com uma poça de tinta azul. Ela olhou para as mãos — limpas, sem resíduos de tinta. Alguém a levou até a cama.
A porta do quarto estava trancada por dentro, a janela lacrada. Nenhum sinal de arrombamento. Mas no ar… um vestígio de bergamota. Angelo.
Ou não.
Caliope levantou, os pés descalços encontrando o chão gelado. Ela devia estar ficando maluca como Angelo iria entrar em seu quarto trancado.
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